A indústria pecuária global não se limita à produção de carne: vísceras, pele, ossos, sangue, gordura, carcaça – tudo é aproveitado, de uma forma ou de outra, em um processo de circularidade. Isso faz com que itens que não são utilizados para a nutrição humana, que é o negócio principal da indústria, ganhem outras utilizações, sendo matéria-prima de diversas cadeias produtivas, como os setores farmacêutico, automotivo e de biocombustíveis.
Segundo reportagem da Exame, são cerca de 250 subprodutos provenientes de bovinos. O fígado é o mais consumido, enquanto o couro se mantém como o bem não consumível mais utilizado.
Isso faz com que o boi tenha alta relevância econômica e logística, sobretudo para o Brasil, terceiro maior exportador do produto no mundo.
Da pele ao colágeno: cosméticos e biomateriais
Embora o couro continue sendo um dos subprodutos com maior valor agregado na indústria da moda ou automotiva, ele também é rico em colágeno e proteínas usadas em cosméticos e biomateriais destinados à saúde. Curativos e scaffolds (estruturas tridimensionais porosas que servem de suporte para regeneração de tecidos ou órgãos) para engenharia tecidual são elaborados por meio de processos industriais que agregam valor a partes antes consideradas descartáveis.
Já a gelatina derivada de tendões e ligamentos dos animais é utilizada como insumo em chicletes, filmes radiológicos e medicamentos.
Pecuária é fundamental para a insulina
O médico Frank Banting, na década de 1920, teorizou que o pâncreas produzia uma substância capaz de controlar o açúcar no sangue. Ele se juntou ao estudante Charles Best, ao bioquímico James Collip e ao fisiologista John Macleod, da Universidade de Toronto, para iniciar os primeiros testes. Em janeiro de 2022, um estudante de 14 anos em coma diabético recebeu uma injeção experimental de insulina, melhorando rapidamente.
Tratava-se, segundo a Revista Questão de Ciência, de uma solução obtida a partir de um macerado de pâncreas animal. Isso significa que o crescimento organizado e sustentável das atividades pecuárias permite o desenvolvimento do medicamento, cuja importância é inquestionável: a 11ª edição do IDF Diabetes Atlas estima que cerca de 589 milhões de adultos viverão com a doença até 2050.
Chifres, ossos e… extintores

Levantamentos técnicos apontam que componentes extraídos de chifres e ossos de bovinos podem ser usados como matéria-prima na formulação de extintores de pó seco, embora sejam poucos os cenários em que o chifre do boi ainda é utilizado para essa finalidade. A finalidade mais comum é na confecção de pentes e botões, assim como outros produtos artesanais.
Já os ossos, que são uma fonte rica de cálcio e ferro, são amplamente utilizados na produção de rações e farinhas para animais. Eles também podem ser calcinados para produzir cerâmica e porcelana – dois materiais comuns na construção civil.
No processo de produção de açúcar refinado os ossos bovinos também podem ser utilizados como fonte de energia das caldeiras.
Gordura e sebo alimentam e enchem o tanque
A gordura é utilizada na formulação de sorvetes, assim como outros produtos de confeitaria. Sabonetes perfumados, velas e sabões levam em sua composição sebo animal, bem como produtos de limpeza, vernizes, lubrificantes e cosméticos.
A produção do biodiesel conta com até 20% de gordura bovina com óleos vegetais para evitar a solidificação do combustível, segundo informações da Embrapa. Trata-se, portanto, da segunda matéria-prima mais utilizada no processo de produção.
Tanto o sebo, quanto a gordura bovina são versáteis e exemplificam como a pecuária pode integrar práticas de aproveitamento total do animal e economia circular.
O ciclo do metano
Até o gás metano emitido pelo processo digestivo dos bois está fundamentado no princípio da circularidade. O metano (CH₄) emitido pelo processo digestivo do animal é produzido a partir do carbono das plantas que ele consumiu, ou seja, carbono previamente retirado da atmosfera pelo processo natural de fotossíntese. Esse metano permanece pouco tempo na atmosfera e, por reações naturais de oxidação, é convertido em gás carbono (CO₂), que volta a ser absorvido pelas plantas, reiniciando o ciclo. Assim, não se trata de adicionar carbono “novo” ao sistema, e sim de recircular o mesmo carbono biogênico em um ciclo curto. Além disso, vale destacar os benefícios do carbono no solo: melhora da fertilidade e da estrutura da terra, aumento da retenção de água e nutrientes e redução da erosão.
Deixar de consumir a carne do boi muda algo?
O aproveitamento integral do boi abastece setores diversos e essenciais, a exemplo da indústria farmacêutica. Selecionar empresas comprometidas com inovação tecnológica em prol de mais eficiência, boas práticas de manejo e cobrar do poder público medidas e investimentos que ajudem a mitigar os impactos adversos do processo agroindustrial é a melhor forma de potencializar as contribuições do setor para a sociedade, a economia e o meio ambiente.
No livro “A Carne Nossa de Cada Dia”, Diana Rodgers e Robb Wolf explicam que a carne, quando produzida de maneira responsável, é essencial para a saúde humana, para a sustentabilidade ambiental e para a ética social. Os autores destacam que alimentos de origem animal fornecem nutrientes frequentemente deficitários em dietas vegetarianas ou veganas, como ferro e vitamina B12. Eles ressaltam ainda que animais de pasto são parte fundamental de ciclos naturais, contribuindo para a fertilidade do solo e para o processo de captura de carbono.
Um estudo mencionado no Capítulo 6 examinou as consequências nutricionais e ambientais da eliminação de todo o gado do sistema alimentar dos Estados Unidos. Nesse cenário, as emissões de GEE diminuiriam apenas 2,6%, e o impacto sobre a disponibilidade de nutrientes seria devastador. Como as fontes de proteína animal têm mais densidade nutricional do que as de origem vegetal, seria necessário consumir muito mais vegetais para obter a mesma quantidade de nutrientes, vitaminas, minerais e aminoácidos.
Nesse cenário, as calorias gerais aumentariam, o consumo per capita de grãos cresceria dez vezes e haveria deficiência em cálcio, vitaminas A e B12, EPA, DHA e ácido araquidônico. Em síntese, haveria mais doenças relacionadas à desnutrição. Os pesquisadores concluíram: “Quando se permite aos animais converter algumas colheitas densas em energia e pobres em micronutrientes (como grãos) em alimentos mais ricos em micronutrientes (carne, leite e ovos), o sistema de produção de alimentos aumenta a capacidade de atender às necessidades de micronutrientes da população”.
Portanto, até mesmo a carne bovina convencional é, nutricionalmente, um ponto central do sistema alimentar. Ao melhorar a produção e terminar o gado em um sistema bem manejado no pasto, o que ajuda a reduzir substancialmente as emissões, os benefícios climáticos se tornam palpáveis. Portanto, a solução não é eliminar todos os animais do sistema alimentar: o gado só precisa ser manejado de uma maneira apropriada.