Upcycling bovino: gado transforma recursos não comestíveis em proteína de alto valor

Do rúmen às pastagens integradas, a pecuária brasileira converte recursos não comestíveis em proteína densa em nutrientes, com ganhos de eficiência e sustentabilidade.

Por Marcia Tojal em 27 de outubro, 2025

Atualizado: 28/10/2025 - 13:28

Gado bovino em um confinamento, relacionado a práticas de upcycling biológico na pecuária para sustentabilidade e manejo ambiental eficiente.
Foto: Minerva Foods

Em meio a uma demanda global cada vez maior por alimentos, existe um sistema biológico pouco conhecido: animais ruminantes, como bovinos e búfalos contam com um estômago dividido em câmaras, começando pelo rúmen. Nesse ambiente, microrganismos fermentam fibras que os humanos não são capazes de digerir e as convertem em nutrientes. Esses, por sua vez, são transformados em proteínas de ótima qualidade para o consumo humano.

Um estudo da divisão de produção animal da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (do inglês, Food and Agriculture Organization) mostra que a maior parte do que alimenta o rebanho mundial não compõe a alimentação humana. Em média, 86% da matéria seca ingerida pelos animais é formada por forragens, resíduos de colheita e coprodutos industriais que não entrariam na mesa das pessoas. Portanto, sem o aproveitamento pecuário, boa parte disso se tornaria passivo ambiental.

Essa capacidade única dos ruminantes de digerir fibras por meio do rúmen, que permite converter recursos que humanos não consomem em proteínas de alto valor biológico, é um dos pontos cruciais para entender por que a bovinocultura ocupa um lugar estratégico na segurança alimentar.

Contribuição líquida de proteína: ganhos mensurados

A eficiência da conversão de recursos em alimentos pode ser medida por métricas como a contribuição líquida de proteína, conhecida pela sigla em inglês NPC. A lógica é simples: a proteína comestível pelos humanos que entra na dieta do gado é comparada com a proteína comestível e de maior qualidade que sai em forma de carne. 

Como explica um estudo publicado no site Translational Animal Science, a partir da avaliação de oito confinamentos comerciais nos Estados Unidos usando dados de produção em nível de lote no período de 2006 a 2017, “os sistemas de produção de carne bovina produzem proteínas de alto valor para a dieta humana, e a sustentabilidade desses sistemas depende da capacidade de produzir proteínas eficientemente capazes de atender às necessidades nutricionais dos seres humanos”, diz o artigo, que explica: “NPC acima de 1 indica que um sistema está contribuindo positivamente para atender às necessidades proteicas humanas, e um NPC abaixo de 1 indica que um sistema está em competição por proteína comestível para humanos [HeP, na sigla em inglês para Human-edible Protein]”.

Na análise, metade dos confinamentos elevou o NPC no período, impulsionado pela substituição de grãos por subprodutos da moagem de milho e por maior eficiência de ganho de peso; em 2017 os valores foram de 0,47 a 1,15. Ou seja, a dieta é fundamental para definir a contribuição para o fornecimento de proteína ou a competição por alimentos comestíveis. Dessa forma, o estudo concluiu que somando as fases de cria e recria, que usam forragens não comestíveis, o sistema bovino como um todo apresenta NPC acima de um, ou seja, contribui para atender às necessidades proteicas humanas. Em síntese, reduzir grãos comestíveis e ampliar subprodutos torna a pecuária mais “doadora” do que “consumidora” de proteína.

Grande pasto verde com gados nelore andando em fileiras e ao fundo árvores.
Foto: Minerva Foods

No Brasil, segundo a Embrapa, cerca de 95% da carne bovina nacional é produzida em regime de pastagens, distribuídas por uma vasta área, incluindo uma base forrageira composta por capins e plantas espontâneas, impróprios para consumo humano. Uma vez consumidos pelo gado, isso é transformado em proteína, ferro heme, zinco e vitaminas do complexo B que compõem um alimento denso em nutrientes. É como se a pecuária bovina operasse como uma engrenagem de upcycling biológico. 

Quando manejadas com técnica, as pastagens ainda elevam a produtividade por hectare, contribuem para a regularidade da oferta de alimento para o boi e aliviam pressões sobre áreas agrícolas aptas a grãos e hortaliças, como explica esse outro artigo da Embrapa.

No entanto, mesmo em terminação intensiva – sistema de engorda de gado que combina pastagem com uma alta suplementação concentrada fornecida em cochos – a qualidade protéica do produto final frequentemente compensa a parcela de grãos utilizada, elevando o saldo líquido para a alimentação humana, como mostrou o estudo americano.

É o caso da fazenda do grupo IZVQ, em Barretos/SP, que inclui na dieta bovina os bagaços da laranja e da cana, resíduos da citricultura e da indústria sucroalcooleira, respectivamente. A propriedade utiliza esse sistema de terminação em confinamento, ou seja, os animais são mantidos em currais e alimentados com rações balanceadas para ganharem peso mais rapidamente antes do abate. O estudo americano mostra que esse tipo de manejo resulta em maior ganho de peso na fase final, o que também pode afetar o NPC. Embora isso possa representar maior consumo de proteína comestível para humanos, com a utilização de resíduos não comestíveis, o impacto sobre o NPC é positivo.

“Um animal adulto a pasto vive de 4 a 6 anos até ir para o abate. No confinamento, esse tempo fica entre 24 e 30 meses. Se ele demora menos tempo para chegar ao local de abate, ele contribui com menos emissão de GEE ao meio ambiente”, explica o consultor em nutrição e estratégia de mercado Rogério Domingues. Esse é outro benefício da dieta bovina estratégica para ganho de peso mais eficiente e, consequentemente, menor ciclo de vida do gado. “Todo metano e carbono que estão indo para a atmosfera demandam parte de energia do animal que poderia estar sendo convertida em carne, em ganho de peso. E isso está se perdendo, indo para a atmosfera. Então, nosso intuito é deixar essa parte energética para que o animal converta mais carne. São dois ganhos: um do animal, que vai ganhar mais peso, e o outro é a redução das emissões para a atmosfera”, acrescenta Domingues.

O processo que transforma resíduos em alimentos

Segundo publicação da Rehagro – especializada em educação para o agronegócio – o rúmen conta com mecanismos fisiológicos que preservam um ambiente propício ao crescimento de microorganismos importantes para o processo digestivo, como bactérias, fungos e protozoários. 

Entre as condições essenciais estão a temperatura estável em torno de 39 °C, mantida por mecanismos homeostáticos que regulam a temperatura interior e o pH adequado, que costuma variar de 5,5 a 7,0. Em um ambiente um pouco menos ácido, com pH a partir de 6,2, trabalham melhor as bactérias celulolíticas, por exemplo, que quebram as fibras vegetais, como as do capim e outros tipos de forragem; e os protozoários, que têm uma função mais ampla de equilíbrio e regulação do ambiente ruminal, além de ajudar na digestão de diferentes tipos de nutrientes. Já as bactérias amilolíticas, que digerem o amido de grãos, como milho e soja, são mais ativas em pH em torno de 5,7, um pouco mais ácido.

Para manter o pH em níveis seguros, a salivação exerce papel central, pois a elevada concentração de bicarbonato, fosfato e potássio confere efeito tampão ao fluido ruminal, ajudando a neutralizar os ácidos produzidos durante a fermentação e evitando quedas bruscas de pH que poderiam comprometer a atividade dos microrganismos responsáveis pela digestão.

Alguns alimentos, como a polpa cítrica ou forragens ricas em fibra, ajudam nessa neutralização do excesso de acidez, funcionando como uma espécie de “amortecedor químico”. Esse é o chamado efeito tampão: ele equilibra a acidez e mantém o ambiente ruminal saudável, garantindo boa fermentação, digestibilidade e desempenho animal.

Upcycling e a redução de desperdícios

Pessoa segurando material de upcycling feito de resíduos, promovendo redução de desperdícios na fabricação de novos produtos sustentáveis.
Foto: BearF otos/ Shutterstock

Polpa cítrica, casca e bagaço de citros, farelos, cascas de soja, subprodutos da cana e outros resíduos gerados de diferentes culturas agrícolas podem substituir parte de insumos convencionais, mantendo desempenho e diminuindo o custo ambiental do descarte. “Utilizamos esses insumos pela sua importância na oferta de uma dieta otimizada para o animal, que favorece a produtividade, mas isso também implica em maior rentabilidade para o produtor, reduzindo custos com insumos agrícolas, como milho e farelo de soja, que são tradicionalmente as principais fontes de energia e proteína na alimentação de confinamento”, explica Domingues. Ao substituir parte desses grãos por resíduos agroindustriais, o produtor gasta menos com insumos concentrados e ainda reaproveita materiais que seriam descartados, transformando-os em alimento de alto valor nutricional.

Do ponto de vista ambiental, essa prática tem impacto direto na sustentabilidade do sistema pecuário. Estudo da Embrapa documenta o potencial da polpa cítrica e de outros subprodutos como fontes energéticas e de fibra altamente digestível na dieta de bovinos, além de registrar esforços recentes para avaliar impactos ambientais positivos desse reaproveitamento. Na prática, a pecuária ajuda a fechar ciclos ao transformar excedentes da indústria de alimentos em carne, reduzindo a pressão sobre aterros e emissões associadas.

Isso ocorre porque, ao diminuir a dependência de grãos cultivados, reduz-se também a demanda por fertilizantes sintéticos ricos em nitrogênio, cuja fabricação é altamente intensiva em energia e emissora de gases de efeito estufa, como o óxido nitroso (N₂O), um gás com potencial de aquecimento global quase 300 vezes maior que o do CO₂.

Além disso, a polpa cítrica tem boa digestibilidade da fibra e pode reduzir a produção de metano entérico, o que contribui para menor emissão de gases por quilo de carne produzida. Uma pesquisa anterior também classificou a polpa cítrica como um ingrediente energético de boa digestibilidade para ruminantes, com potencial para melhorar o aproveitamento da dieta sem prejuízo à produção animal.

Assim, o uso desses resíduos na dieta bovina aumenta a eficiência econômica e ambiental do sistema, promovendo um modelo de economia circular, em que subprodutos da indústria de sucos retornam à cadeia agropecuária como insumos sustentáveis.

A adoção de boas práticas de manejo de pasto e de integração produtiva é outro elo dessa cadeia de valor. Sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta aumentam a eficiência no uso da terra, diversificam a renda e contribuem para mitigar emissões por unidade de produto. Evidências apresentadas pela Embrapa indicam ganhos de produtividade e de sustentabilidade quando pastagens de alta performance e sistemas integrados são implementados corretamente. Com isso, o rebanho aproveita melhor os recursos forrageiros, mantém o foco em alimentos não comestíveis por humanos e entrega mais proteína de qualidade por hectare. 

Fontes de referência:

  1. Citrus pulp for cattle
  2. Com Efeito Poupa-Terra, pecuária bovina brasileira cresce sem pressionar florestas
  3. Effects of Replacing Extruded Maize by Dried Citrus Pulp in a Mixed Diet on Ruminal Fermentation, Methane Production, and Microbial Populations in Rusitec Fermenters
  4. More Fuel for the Food/Feed Debate
  5. Net protein contribution of beef feedlots from 2006 to 2017 
  6. Produção de carne bovina – pastagens
  7. Qualidade da produção da carne bovina
  8. Sistema baseado em pastagens de alta performance aumenta produção pecuária
  9. Subprodutos da indústria na nutrição de bovinos promovem benefícios ambientais


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