Rastreabilidade bovina, muito além da conformidade ambiental, um pilar de bem-estar

Impulsionada pelo compliance ambiental, tecnologia também beneficia o bem-estar animal e até a segurança do alimento.

Por Roberto Francellino em 28 de novembro, 2025

Atualizado: 27/11/2025 - 11:52

Vaca leiteira em fazenda de criação de gado na arejamento ao céu aberto, com numerosos animais ao fundo, destacando o ambiente rural e o bem-estar animal.
Foto: Minerva Foods

Quando se fala em rastreabilidade na pecuária bovina, o debate público é dominado pela pressão por compliance ambiental, impulsionada por acordos como os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) e a nova regulação anti-desmatamento da União Europeia (EUDR). A rastreabilidade está rapidamente deixando de ser um diferencial para se tornar uma “licença para operar”. Mas essa tecnologia também beneficia outros dois pilares: o bem-estar animal e a segurança do alimento.

A infraestrutura de dados foi criada, principalmente, para endereçar questões relativas ao desmatamento. Mas o mesmo “brinco” ou “chip” que serve como prova de uma origem livre de desmatamento é a ferramenta que permite o monitoramento da saúde individual e a garantia da cadeia de custódia sanitária. Assim, a pauta ambiental está, na prática, financiando e acelerando a adoção de tecnologias que elevam todo o padrão da cadeia.

Do ferro quente ao biomonitor

A história da identificação bovina no Brasil é marcada pela evolução tecnológica. O ponto de partida, por séculos, foi a marcação a fogo. Seu único propósito era a prova de propriedade. Contudo, essa técnica causa dor e estresse ao animal, além de deixá-lo suscetível a infecções e danificar permanentemente o couro, reduzindo seu valor comercial.

O primeiro elemento a contribuir para diminuir o uso dessa prática foi a criação do Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov), que introduziu o brinco visual como padrão, um avanço sobre a marca a fogo, mas ainda um sistema passivo. 

A medida foi impulsionada pela segurança do alimento e pelo acesso a mercados – uma resposta às crises sanitárias ocorridas na Europa nos anos 1990, como a “Doença da vaca louca” (encefalopatia espongiforme bovina). Países importadores, especialmente a União Europeia, passaram a exigir a capacidade de rastrear o animal “da fazenda à mesa” como condição de compra. 

A etapa seguinte foi impulsionada pela identificação eletrônica (EID). A introdução da tecnologia de Identificação por Radiofrequência (RFID) permitiu a automatização da coleta de dados. Brincos eletrônicos e o bolus intraruminal (um transponder de cerâmica que se aloja no rúmen do animal, contendo um chip) eliminaram erros de digitação e automatizaram registros de manejo, como pesagem e vacinação.

Hoje, na era da Pecuária de Precisão (PLF), a identificação evolui de um “número” para um “biomonitor”. Colares eletrônicos que monitoram o tempo de ruminação (um indicador primário de saúde) e sensores de temperatura, alguns desenvolvidos pela Embrapa e posicionados no canal auditivo do animal, permitem o monitoramento da saúde em tempo real.

O fim da marca a fogo: o exemplo de São Paulo

No estado de São Paulo, historicamente, a marcação a fogo era usada para diversos fins, incluindo o controle de vacinação. Em 2024, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo (SAA) publicou a Resolução SAA nº 78/24, que eliminou a obrigatoriedade da marcação a fogo para fêmeas bovinas e bubalinas vacinadas contra brucelose. A nova resolução estabeleceu um modelo alternativo baseado em bottons (brincos) de cores específicas (amarelo ou azul, dependendo da cepa da vacina).

A justificativa oficial do governo paulista para a mudança foi a busca por uma “abordagem mais humanizada” e uma drástica “redução de estresse nos animais”. O Executivo paulista destacou ainda que a mudança “valoriza a pecuária paulista, promovendo boas práticas” e, crucialmente, “abrindo novas oportunidades no mercado internacional”. No entanto, os machos continuam suscetíveis à marcação a fogo, uma vez que a resolução não faz menção direta a eles.

A pecuária de precisão e o bem-estar mensurável

Homem montando cavalo enquanto observa rebanho de gado em campo aberto sob céu nublado na fazenda.
Foto: MS Cattle / Shutterstock

A Pecuária de Precisão (PLF) aplica tecnologias de monitoramento para gerenciar a saúde e a produção de animais individualmente, em vez de por médias de rebanho. Estudos científicos demonstram correlações diretas entre o comportamento do animal (como a reatividade no curral) e indicadores fisiológicos de estresse, como níveis elevados do hormônio cortisol. 

A tecnologia PLF permite esse gerenciamento em tempo real. Sensores de ruminação em colares ou de temperatura em brincos e bolus permitem a detecção precoce de doenças, dias antes dos sintomas visuais (como isolamento ou perda de apetite). Isso resulta em três ganhos:

  • Ganho de bem-estar: O sofrimento do animal é reduzido. A Minerva Foods, por exemplo, alinha seu compromisso de bem-estar animal aos cinco domínios reconhecidos internacionalmente, materializando-o em políticas e monitoramento contínuo.
  • Ganho econômico: o tratamento precoce é mais eficaz e a taxa de mortalidade diminui.
  • Ganho de segurança do alimento: o uso de antibióticos torna-se mais direcionado e reduzido, beneficiando toda a cadeia.

Identificação individual como pilar da segurança do alimento

A identificação individual é, atualmente, a ferramenta de gestão de risco mais eficaz na pecuária, atuando de duas formas:

  1. Prevenção: o sistema é a base para o monitoramento de “pontos críticos”. Ele permite registrar o uso de medicamentos veterinários, garantindo o respeito ao período de carência e evitando resíduos químicos na carne. Também valida o histórico de vacinação e o status sanitário de cada animal, garantindo a conformidade com certificações obrigatórias, como o Serviço de Inspeção Federal (SIF).
  1. Reação (recall): em um cenário de surto de doença, como Febre Aftosa, ou contaminação microbiológica, a rastreabilidade permite identificar exatamente quais animais, de quais fazendas, tiveram contato com o problema. Isso permite um recall, protegendo a saúde pública e salvando o restante do mercado.

Os desafios para a identificação universal

Embora haja avanços na rastreabilidade do rebanho brasileiro, a implementação de um sistema de rastreio individual universal enfrenta desafios estruturais. 

O primeiro é o custo. A implementação de brincos eletrônicos, leitores e softwares representa um custo que recai sobre o produtor. E nem sempre há garantia de um “prêmio” (pagamento adicional) pela carne rastreada. 

O segundo desafio é a inclusão do pequeno produtor. A pecuária brasileira é pulverizada, com milhões de propriedades. Muitos produtores na base da cadeia possuem menos capital, infraestrutura e familiaridade tecnológica para adotar e gerenciar os sistemas digitais.

O terceiro, e mais complexo, é o “gargalo” do fornecedor indireto. A cadeia é segmentada: frigoríficos compram de fornecedores diretos (engorda), que por sua vez compram de fornecedores indiretos (cria e recria). É nessa pulverização que pode ocorrer a “lavagem de gado” — animais de áreas ilegais (desmatamento) são movidos para uma fazenda legalizada antes da venda final, quebrando a rastreabilidade.

Convergência e transparência na cadeia

Resolver esses desafios é o foco atual da indústria e do setor público. Soluções de governança, como o Grupo de Trabalho de Fornecedores Indiretos (GTFI), buscam cruzar dados públicos, como a Guia de Trânsito Animal (GTA)  e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para mapear o fluxo do gado.

Ao mesmo tempo, a tecnologia avança. Plataformas baseadas em blockchain estão sendo usadas para criar registros imutáveis, garantindo a transparência dos fornecedores. Iniciativas da indústria, como o Programa Renove da Minerva Foods, já trabalham junto a pecuaristas para implementar práticas avançadas, que incluem a medição de emissões e a rastreabilidade como parte de uma produção mais sustentável.

Fontes de referência:


Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.