Por mais que acarrete em ganhos socioambientais, o aumento das exigências em torno da sustentabilidade na produção da carne traz também um desafio para os produtores rurais, que precisam se adaptar rapidamente a novas regras de produção para atender, especialmente, à demanda do mercado externo.
O cenário é complexo tanto pela heterogeneidade dos produtores brasileiros, com diversos portes e configurações, quanto pela própria dimensão continental do País, que engloba uma ampla gama de especificidades climáticas, de acordo com cada bioma, cultura e até dos aparatos jurídico e normativo.
Setor heterogêneo, com predominância de pequenos e médios produtores
Cerca de 30% da carne bovina produzida no Brasil é exportada, o que faz do País o maior exportador global da commodity, de acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).
No entanto, embora muitas fazendas já invistam em medidas sustentáveis, como a prática da Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF), nem todas estão avançadas nesta frente.
Em sua participação no evento “Governança e Sustentabilidade na Cadeia da Carne Bovina”, promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Institucionais (Cebri), o professor de Agronegócio Global do Insper e coordenador do Insper Agro Global, Marcos Jank, explicou o cenário citando a heterogeneidade da cadeia produtora de carne no Brasil, com fazendas de diversos portes e perfis.
Em complemento, João Paulo Franco Silveira, coordenador da área de produção animal da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e ex-empreendedor rural, destacou o fato de que cerca de 70% das propriedades agropecuárias no País têm menos de 50 hectares, ou seja, são de pequeno ou médio portes. Segundo ele, os ruralistas de menor porte têm muito mais dificuldade de seguir as novas regras ligadas à sustentabilidade que os maiores.
Um estudo da Embrapa Territorial, com base em dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e do Censo Agropecuário 2017, identifica que as áreas dedicadas à preservação da vegetação nativa nas propriedades rurais brasileiras somam 282,8 milhões de hectares, o que corresponde a 33,2 % do território nacional.
Rastreabilidade é o desafio mais latente

O Brasil possui um rebanho bovino de 238,2 milhões de animais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Deste total, segundo apuração da Forbes, cerca de 4 milhões de animais estão registrados no Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Bubalinos (SISBOV), o que representa apenas 2% do rebanho.
O Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desflorestamento (na sigla em inglês, EUDR), que proíbe a importação e comercialização de, entre outros, carne sem garantias de que não foi produzida em áreas desmatadas, desafia o Brasil a reverter esse quadro. Como a EUDR exige que empresas europeias façam due diligence (diligência prévia) para comprovar a legalidade e a origem dos produtos, mecanismos robustos de rastreamento se fazem necessários.
Para isso foi criado o Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (PNIB), em dezembro de 2024, que estabelece a obrigatoriedade de “brincagem” e identificação individual do gado em todo o País — uma mudança que mira tornar o rebanho rastreável do nascimento à indicação de abate. A implementação prevista é progressiva, com estados e produtores tendo até 2032 para alcançar rastreabilidade plena.
Esse cronograma rígido representa um obstáculo técnico e financeiro para muitos pequenos e médios produtores.
O custo por cabeça de brincos eletrônicos, chips, sistemas de radiofrequência ou outras tecnologias de rastreio pode pesar no orçamento de quem trabalha com rebanho modesto. Além disso, muitos produtores não dispõem de infraestrutura para coleta, alimentação e transmissão de dados georreferenciados, integração de sistemas ou conexão digital constante. A falta de suporte técnico local torna a curva de adoção mais íngreme.
Além disso, a exigência vai além dos elos finais. Ou seja, não se limita às fazendas imediatamente fornecedoras dos frigoríficos, ampliando o escopo de quem está na ponta, que se não conseguir comprovar rastreabilidade ou integridade ambiental do lote, corre o risco de ver seu produto rejeitado em mercados premium. Isso gera insegurança no retorno do investimento em sistemas de rastreio.
Regularização fundiária é desafio de base
“A parte cadastral de bases é muito importante para o avanço das políticas de sustentabilidade. Enquanto tivermos uma malha fundiária não definida, direitos de propriedade não definidos, o incentivo feito em torno da sustentabilidade torna-se mais fraco”. A colocação do coordenador do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Guilherme Bastos, no evento do Cebri, mostra que os desafios começam já no cadastramento das propriedades rurais.
O País ainda carece de um cadastro efetivamente validado, transparente e interoperável, condição essencial para que ele cumpra seu papel de instrumento de comando e controle, e também de base confiável para políticas de rastreabilidade, compensação ambiental e monitoramento de emissões.
Criado pelo Código Florestal de 2012 (Lei nº 12.651/2012), o CAR é um registro público eletrônico, obrigatório e gratuito para todos os imóveis rurais do Brasil. Ele reúne informações ambientais das propriedades e posses rurais, como Áreas de Preservação Permanente (APPs), Reservas Legais, áreas de uso restrito, vegetação nativa e áreas consolidadas, com o objetivo de permitir o monitoramento, o planejamento ambiental e o combate ao desmatamento.
Embora seja uma das principais ferramentas de gestão ambiental do País, enfrenta gargalos estruturais. De acordo com o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) em dados de outubro de 2025, mais de 8 milhões de imóveis rurais já estão cadastrados, o que representa mais que o total de imóveis ativos no Cadastro de Imóveis Rurais (Cafir) da Receita Federal. Porém, apenas cerca de 3,3% dos cadastros tiveram a análise concluída, segundo dados da Radiografia do CAR e do PRA nos Estados Brasileiros 2024.
Além disso, como o CAR é declaratório, ele depende da veracidade das informações prestadas pelo proprietário. A ausência de checagem em tempo real e de cruzamento sistemático com dados de satélite e cadastros fundiários permite inconsistências, sobreposições e até registros fraudulentos, especialmente na Amazônia Legal.
Para minimizar esse risco, há o Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes). O sistema desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) utiliza imagens de satélite para gerar a taxa oficial de desmatamento anual na Amazônia Legal brasileira. Mas ele enfrenta falhas.
Segundo Marta Giannichi, diretora global de Sustentabilidade da Minerva Foods e da MyCarbon – empresa de descarbonização subsidiária da Minerva focada em créditos de carbono – são necessários avanços significativos para que o Prodes diferencie desmatamento legal do ilegal, o que torna a identificação do que está ocorrendo, de fato, desafiadora.
Outro desafio está na integração do CAR com políticas de rastreabilidade e regularização ambiental. Sem a validação definitiva, o cadastro não serve como comprovação ambiental plena, o que limita seu uso para certificações, concessão de crédito rural e exportação de produtos para mercados com exigências mais rigorosas, como a União Europeia.
As iniciativas legislativas em tramitação buscam reduzir parte dessas lacunas estruturais. O projeto de lei que trata da regularização fundiária (PL 510/2021) visa conceder títulos de propriedade que permitem identificar e responsabilizar juridicamente os proprietários por eventuais infrações à legislação ambiental. Já o PL 2159/2021, que propõe a modernização do licenciamento ambiental, tem como foco adaptar os processos à realidade digital e às novas tecnologias de monitoramento remoto, tornando mais ágil a análise de empreendimentos sem reduzir o rigor técnico.
Ambos os projetos dialogam com o mesmo desafio estruturante destacado por Bastos: a consolidação de uma base fundiária e regulatória sólida, capaz de integrar informação, propriedade e responsabilidade ambiental em um sistema realmente funcional.
Transição viável depende de financiamento
Para que a transição seja viável, muitos especialistas defendem que o Estado ofereça linhas de crédito, subsídios ou apoio técnico. Silveira está entre eles. Para o ex-produtor rural, as iniciativas do governo em torno da sustentabilidade junto aos produtores são boas, mas ainda pouco abrangentes. “O Plano ABC, sem dúvida nenhuma, é o maior programa que se tem dentro do Plano Safra, é o produtor rural tomando crédito para investir em sustentabilidade. Mas ele é suficiente? Não, não é”, argumentou.
O Plano Safra é um conjunto de políticas públicas do governo federal que oferece crédito e incentivos para apoiar a produção agropecuária, facilitando, por exemplo, financiar custeio e investir em maquinários. Mas, como ressaltou Bastos, “representa apenas um terço do que o setor efetivamente precisa”.
Marta entende que políticas de incentivo ou treinamentos, envolvendo as fazendas que investem em sustentabilidade, possam contribuir. Ela citou como exemplo de incentivo ao produtor o Programa Renove, da Minerva Foods – iniciativa junto a produtores para promover a pecuária de baixo carbono e práticas regenerativas.
Cases de sucesso do programa tem mostrado que os desafios também trazem oportunidades. Produtores que conseguem superar as barreiras e protagonizam a transição para um setor cada vez mais sustentável, eficiente, resiliente e responsável, também mensuram ganhos, como maior competitividade, acesso a novos mercados, redução de custos, de riscos e ganhos em produtividade e rentabilidade, em dia com o futuro.
Fontes de referência:
Boas práticas na agropecuária contribuem para reduzir impacto ambiental
Brasil bate recorde nas exportações de carne bovina em 2024
Desafios e perspectivas da agricultura: entre a crise e a sustentabilidade
Governança na Sustentabilidade da Cadeia da Carne Bovina